É difícil não cair em um chavão quando falamos sobre a ligação dos nossos sentidos, olfato, visão, audição, paladar e tato àquilo que degustamos, levando ao nosso cérebro sensações únicas de prazer, muito além da saciedade. Se há alguma dúvida sobre a audição, quem ousa negar os sons que norteiam o preparo do alimento, ao frigir do óleo, do raspar da colher na panela, ao trincado crocante de um vegetal fresco, perceptíveis alertas para o momento exato de acelerar, interromper ou encerrar o trabalho.
Aristóteles afirmava que não havia outra forma de percepção sensível além dos cinco sentidos e que o intelecto não poderia ser adicionado à esses por ser totalmente distinto da sensação. Considerou a aliança entre a percepção sensível e o pensamento como, este sim, “um ato único e um mesmo algo” antes mesmo de chegar ao intelecto.

“Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos”.
Na fantástica animação Ratatouille, na cena em que o crítico de fama arrogante e de difícil contento experimenta um prato tradicional e rural da França e elaborado pela personagem de um rato (um divertido contrassenso do filme), em sua primeira garfada, ao primeiro contato com o alimento, prova uma sensação esquecida da sua infância e, automaticamente, seu semblante muda de imediato, como se o sentimento trazido pela carga amorosa de uma infância feliz lhe fizesse transcorrer para o seu outro lado e que o divisor de águas foi sua primeira garfada.
Hoje, mais de 2000 anos após Aristóteles, e ainda se acreditando que a percepção seja apurada apenas pelos sentidos, até que nos provem o contrário, alguns teóricos acrescentaram subsentidos à lista e, se formos além, encontraremos provavelmente, no futuro, infinitas faces das percepções concretas ou imaginárias, contestando às convicções de Aristóteles quando insistia em afastar o intelecto dos sentidos.
Trazendo o assunto para a cozinha, o que parecia chavão agora já não parece tanto. Afinal, talvez não haja no mundo outro local tão recheado de sentidos, em tão pequeno espaço físico e temporal, em meio à tantas tarefas e diversificadas pessoas que possa servir de melhor cenário para o laboratório de estudos da tese dos 5 sentidos de Aristóteles.
Mas, apesar desse fulgor, entre as “N” modalidades de cozinha, existem as “de rua”, em seus diversos tipos de estabelecimentos, dos mais populares aos mais sofisticados que, em sua grande maioria, está quase na sua totalidade vinculada à uma atividade comercial que nada combina com a magia sensorial e anímica que deveria existir nesse laboratório perfeito, pois despreza a sutileza dos seus sentidos. Ali, cabe apenas ao intelecto decifrar em números concretos quantos litros de sopa se poderá fazer com apenas um frango e, abrindo mão de todos os sentidos e bom senso, apode acabar aplicando uns cubos de caldo de galinha para resolver a questão. É certo que o aspecto comercial não é de todo ruim para a cozinha, principalmente a de rua, pois torna possível a sua sobrevivência, da mesma forma que o empresário é muitas vezes a salvação de um artista, mas o que ocorre de mal, na verdade, é o sobrepujamento da parte sensorial como vetor maior, esquecendo-se da importância e da necessidade de ser esta a sua galinha dos ovos de ouro, a verdadeira alma do negócio, o que lhe permitirá uma ascensão por vezes mais demorada, mas por outro lado, mais fulgurante.
A techne de produzir “opsa” (do grego “opson”, ou seja, tudo que vem cozinhado”) era comumente vista como o saber cujo domínio permitia fazer da alimentação um ato de fruição/prazer…Todos os esforços de amadores* para se aventurarem na culinária são vistos como um capricho caro, uma extravagância. (Xenofonte – Século V a.C)
“*Já no Século IV a.C os sábios culinários (formados em astrologia, medicina, geometria, estratégia e aritmética) os “entendidos” correspondiam à pessoas que conheciam a arte, não para dela tirarem o seu sustento, mas pelo interesse que sentiam em conhecê-la e de, dela, fazerem eventualmente, uso pessoal, cujo maior benefício era a fruição do prazer”. (frase retirada da Biografia: Contributos da História para a alimentação na antiguidade, Carmem Soares e Paula Barata Dias, Imprensa da Universidade de Coimbra)

Diante de tão ricas possibilidades, algumas experiências sensoriais continuam a ser feitas, mais especificamente, nos mais privilegiados locais, considerados exemplos da gastronomia de alta performance aliando técnicas e ambientações das mais inusitadas e experimentos, tais como os “restaurantes às cegas” que ao “eliminar” a visão propõe o aumento na intensidade dos outros sentidos. Uma jogada curiosa, mas, que particularmente, eu refutaria, pois ao saborear uma boa comida, prefiro utilizar todos meus sentidos.