N.Sra do Rosário

Verão de 2023, quinta-feira, 16 de fevereiro. Saí de casa mais cedo, o dia já amanheceu prometendo ser quente. Tinha um compromisso para resolver, assunto de família, desses que só tomam o tempo da gente e que acabou por tomar mais tempo do que eu esperava. Quando terminou já era quase 11h.

Família é uma faca de dois gumes, é como o corpo da gente, quando os membros não se harmonizam, o restante do corpo ressente e os mais afetados sempre são o coração e a mente.

Mas não é disso que vim falar. Aliás, pode até ser que mais tarde eu perceba alguma correlação entre este compromisso e o que veio a seguir mas fato é que, este último, foi o motivo de eu voltar a escrever.

Como disse, saí do compromisso por volta das 11, peguei o metrô e, ali, decidi ir dar uma volta pelo Centro da Cidade. Aproveitar aquele restinho da manhã, quem sabe no CCBB, vendo uma exposição.

Saí na Carioca, ainda sem saber ao certo o destino. Comecei a andar em direção à Rua do Ouvidor, entrei por um beco e saí na Rua do Rosário. O calor era de maçarico, já beirava o meio dia. Resolvi parar e tomar um suco para depois seguir caminho.

Dei o último gole, paguei o suco e ao invés de sair direto na rua, no sentido da Rio Branco, fiquei ali, parada, na entrada do estabelecimento.

Olhei para o lado oposto e lá, no fim da rua, vi a Igreja de ‘N. Sra. do Rosário e São Benedito dos homens pretos‘ (é este o seu nome completo) e tinha a porta aberta. No interior, as luminárias acesas e salpicadas faziam um cenário muito antigo.

As poucas vezes que passei por essa igreja, ela estava sempre fechada, e eu fui guardando a curiosidade de a conhecer por dentro. Primeiro, porque essa igreja representou um marco na história do Brasil Colonial e do movimento abolicionista. Segundo, por que descobri, pesquisando a minha origem genealógica, que alguns antepassados moravam nos arredores e as chances são grandes de que a frequentavam.

Esqueci por completo o CCBB e fui para este outro lado.

No átrio da igreja tinha uma senhora vendendo café da garrafa térmica” – quer um cafezinho? é 1 real.” – eu aceitei ” – Veio ver a missa? Vai ser agora meio-dia, assiste, é muito boa” Olhei no relógio, faltava só 10 minutos para o meio dia.” – É mesmo? Não vim para ver a missa não, mas, então, vou assistir”

Tomei o café (muito bom para um de garrafa térmica), entrei e me sentei num dos bancos da nave, pronta para esperar a missa. Algumas pessoas estavam sentadas, aqui e acolá, espalhadas na nave, também à espera.

Comecei a observar a decoração e a comparei com à das outras igrejas da época. Essa parecia bem mais simples. Não havia vitrais, nem afrescos, nem muito menos qualquer vestígio de ouro nos ornamentos.

Enquanto esperava, comecei a tirar umas fotos.

Havia três senhoras em pé, um pouco mais atrás de mim e uma delas se aproximou: ” Você pode segurar o andor?” Na hora, não entendi. Confesso, não entendi o convite porque não sabia o que era ‘andor’, mas imaginei que se tratasse de um pedido de ajuda qualquer para a missa e, consciente da minha ignorância no assunto religião, fui logo avisando. ” – Desculpe, acho que não mereço o convite, não sou devota, nem mesmo católica, nem sequer fiz a primeira comunhão.” – E era a pura verdade. Meu pai biológico se separou de minha mãe quando eu estava ainda em sua barriga e, por sorte, um homem generoso e apaixonado entrou em nossas vidas e assumiu a situação. Uma história de conto de fadas, com um lindo final feliz, mas que, na época, a igreja considerava pecado.

– não tem importância” disse a senhora meio que sem, nem ela, saber o porquê. ” – Levante um instante, deixa eu ver sua altura…. hum, acho que dá, né? ” – perguntou para a outra que estava à sua frente e que, após ter se colocado de ombro a ombro comigo para medir, assentiu com a cabeça. ” – Então, você pode?” insistiu.

” – Se vocês acham que sim, tudo bem” afinal, por que não ser útil ao evento mesmo que não soubesse como?

– Vocês esperem aqui que daqui a pouco venho chamar as duas” disse a senhora, presumo que fosse a figura principal na organização de tudo, e saiu para resolver outras coisas. O meu par de ombros sentou-se ao meu lado.

– Você vem sempre aqui?” puxou conversa

” – Não. É a primeira vez que entro nessa igreja. Quando passava por aqui estava sempre fechada e, hoje, quando vi que estava aberta, resolvi entrar para ver como era por dentro e agora, vou assistir a missa”. Percebi que ela me olhou um pouco surpresa, mas continuou: ” – que bom , você vai gostar. O padre é maravilhoso, a missa dele é ótima, eu venho sempre, e hoje é um dia especial” Fiquei ali digerindo a missa e o misterioso convite com uma sensação estranha entre ter ganho um presente e me sentir uma alienígena.

Os fiéis não paravam de chegar.

A senhora que organizava a missa voltou ” – tá na hora! Vamos! Vamos vestir as roupas” Quando ela terminou a frase percebi que o ‘andor da carruagem’ era mais sério do que eu pensava, mas não havia mais tempo para voltar atrás e segui os passos da aventura, seguindo a senhora. Passamos pela nave e ela nos levou até uma outra sala.

Assim que entramos na sala, começou a agitação do pegar as vestes e meus olhos se voltaram para a imagem. Ali estava ela, à espera da festa, ornada com um grande arranjo de rosas amarelas e vermelhas apoiada sobre um… ” – muito prazer, andor“.

Colocamos as vestes por cima da roupa. Nessa hora, com o calor que fazia, tive o disparate de perguntar se podia tirar a blusa de dentro (este é um traço de personalidade que infelizmente carrego, uma naturalidade no ver as coisas que às vezes se torna um defeito) e a senhora, com olhar de estranheza e piedade ao mesmo tempo respondeu: ” tá muito calor né? você é que sabe (e os seus olhos diziam,: “você não deve fazer isso”) percebi logo, pois ao lado do defeito tenho uma intuição em alerta que sempre me salva. ” – quer tirar uma foto?” mudou ela o foco, e claramente conseguiu. pois eu precisava de um registro daquilo tudo, mesmo que com a aparência suada de calor e pensamentos.

Chegara o momento. Nos posicionamos no andor. Éramos em quatro, dois homens e duas mulheres que intercalamos em X. ” – Um, dois, três, quatro!…” e o andor foi para o alto, bem erguido! Foi quando também percebi que as alturas não tinham sido bem avaliadas, pois precisei levantar meu braço quase esticado, bem mais do que os outros três. Nesse momento só pude agradecer estar em dia com a malhação.

Conseguimos equilibrar a imagem após eu receber algumas dicas: “– não segure na almofada, segure na madeira” calculei que a almofada era para apoiar o andor no ombro, mas se esta o quisesse alcançar, no meu caso, a santa com certeza cairia.

E lá fomos nós caminhando pela lateral da igreja para sair na Uruguaiana trocando o cimento pelo paralelepípedo em meio a um ‘mundaréu’ de gente, barracas e mercadorias até chegarmos à porta da frente.

Todos esperavam a nossa chegada. Todos de pé, tanto os que estavam na porta quanto os de dentro. Assim que chegamos, pétalas de rosas choveram sobre Nossa Senhora e, por efeito cascata, sobre nós quatro. Desejei imensamente filmar aquilo tudo, ainda tentei buscar meu celular que estava guardado no no bolso de trás da calça, mas a veste era comprida demais para que eu conseguisse alcançar, mesmo porque, à essa altura, o preparo físico já não foi suficiente e eu me vi obrigada a segurar o andor com as duas mãos. É que os fiéis tentavam tocar as deles na santa.

Depois de atravessarmos a nave sobre o tapete vermelho, chegamos ao altar. Pousamos a imagem de frente para os fiéis e ficamos ali, os quatro, de frente, na primeira fila, de onde assistimos todo o restante da missa. Duas horas de defumação, benzimento, benção, orações, músicas, emoções e tantos pensamentos que fica difícil contar com palavras.

Saí da igreja em silêncio.

Não conseguia pensar em nada. Só revia as cenas na memória como se tivesse acabado de assistir a um filme. Eu ia assistir, só e passivamente, uma exposição, mas descobri que a criatividade Divina supera qualquer expectativa humana.

Não posso deixar de agradecer à Nossa Senhora do Rosário,

Enorme gratidão por este dia inesquecível em minha vida

e pela confiança

de a manter no alto, para que todos a vissem.

Kawer

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