Ela chega e é para todos. Chega sem ser convidada e, como dizia meu pai com sua sabedoria pontual, mas sempre verdadeira, sua chegada “- é inexorável”. Ela vem de mansinho, trazendo umas trouxinhas incômodas aqui, outras ali, se espalhando, como a água de um rio que, de repente, cresce e inunda tudo. Vai tomando conta do espaço, entre distrações, confusões, perda de memória, ela vai mexendo com os hábitos, com a rotina e suas consequências variam conforme o estilo de cada casa que a acolhe.
É o caso da Edina. Está na casa dos noventa e dois anos. Goza de boa saúde física, mas como temperamento é o que podemos dizer de maneira sutil, forte, mas, honestamente, teimosa. E isso faz dela uma pessoa marcante onde quer que tenha passado em sua vida, o que muito a envaidece. Fato é que hoje, junto à teimosia, passou a ser também ranzinza, tudo por causa da chegada dela, a visita. Apesar de toda a sua inexorabilidade, a Velhice pegou Edina de surpresa, pois para ela o seu mundo jamais seria diferente do que ela sempre viveu.
A briga da Edina com a ‘intrusa’ é constante, diária, ininterrupta. Edina tenta desviar-se da visita a cada vez que percebe que esta tenta limitar seu espaço, impedindo-a de fazer as coisas que fazia. Não gosta das trouxas espalhadas pela casa, verdadeiros empecilhos e, principalmente, não gosta da sensação de não estar mais sozinha, independente, além de ter que encarar a presença da força tarefa que vem com a visita, enfermeiras, cuidadoras e o escambau à quatro.
É o que eu digo, cada casa é uma casa. A visita é sempre a mesma, mas o que varia no impacto do encontro é quando a casa ainda não está preparada para a receber. E que isso sirva de alerta para nós. posto que inexorável, que só nos resta preparar a casa e receber bem a visita. Pelo menos com uma convivência pacífica, Eu estou pensando seriamente adotar o minimalismo como estilo de vida em minha casa de agora em diante.
E já se sabe que o que ocorre na casa de Edina é algo bem diferente da paz que se vê nos lares das velhinhas da Disney. Tranquilas, bonachonas, em suas cadeiras de balanço fazendo tricô ou crochê, fluindo com os bons tempos. Edina está mais para a Granny O’Grimm (personagem do curta de animação de Nicky Phelan, cujo o link segue no final), só que… sem a fantasia! Agora sim, podemos imaginar o clima.
Fato é que Edina foi mimada durante o maior tempo de sua vida, quando não era pelos outros, era por si mesma. Viveu um casamento com um homem apaixonado, o que é o suficiente para entender que este lhe fazia todas as vontades. Edina era a ‘dona-da-casa’, que é bem diferente de quando usamos a preposição ‘de-casa‘. Edina sempre teve empregada, faxineira, motorista e dinheiro na mão para gastar como quisesse, e sem precisar trabalhar. Gostava muito de sair às ruas, em compras passeios, cursos, eventos ou seja lá o que mais inventasse para ser social, sua maior vaidade. Uma sincera devoção à sua autoestima.
Pronto, agora na idade avançada, com tanta desordem na casa da Edina, a visita acabou encontrando sem querer mais alguns objetos fora do lugar (além daqueles que ela própria trouxe). Um objeto em especial estava desapercebido na casa. A origem dele é uma incógnita, pois não se sabe até hoje se estava ali guardado como herança de família ou se pertencia aos antigos donos da casa. Há várias versões sobre o seu surgimento, mas fato é que foi assim que a visita encontrou na casa de Edina o Alzheimer.
A Velhice, por si só, já tinha trazido algumas limitações à Edina, alguma senilidade perfeitamente contornável, mas a descoberta dessa doença mudou bastante o quadro. Da aversão ao banho, ao não recordar-se de mais nada sincronizado aos lugares que visitou, do dia em que está ou do que comeu, ou se comeu, é um à mais que não estava no script original.
No caso de Edina, por sorte, e em paralelo, goza de uma boa saúde clínica, mora em sua própria casa, tem constante atenção e amor. Pode se considerar uma afortunada, mas, ainda assim, ela se sente triste, pois rejeita terminantemente a visita que a limita e que ela, Edina, tenta esconder por trás daquilo que a velhice lhe revelou.
Considero Edina uma guerreira, apesar de triste, pois viu seu mundo ruir e mesmo não controlando-o mais e com tanta impaciência, permanece em sua casa, ranzinza…
Mas mais forte do que sempre foi.
Kawer
Link do vídeo de animação: https://youtu.be/cIDv1jJhoxY