Quando criança, lá pelos anos 70, com seis e até os quatorze anos, Beatriz tinha um interesse curioso de observar as pessoas. Não só como elas eram através dos traços, gestos e trejeitos, mas também o que pensavam, sentiam, enfim, aquilo que tinham por dentro.
Talvez por ter nascido numa família de classe média, numa escala média de conforto, nada extravagante, nem desconcertante, Beatriz parecia viver na linha do meio, por isso conseguia enxergar pelos dois lados da moeda o que a fazia estender os pensamentos com limites mais amplos.
A família sempre morou em apartamento, na zona Norte do Rio, a zona entre o luxo e a pobreza. Quando Beatriz contava onze anos, o pai comprou uma casa de veraneio numa praia afastada, local que passou a ser destino dela e dos irmãos para todas as pausas escolares, fossem elas de verão ou de inverno, incluindo férias, fins de semana e feriados. Descendente de português como era, o pai fizera as contas no lápis, que segredava em seu ouvido, que ali estava um bom investimento, afinal manter quatro adolescentes afastados dos atrativos da cidade grande, tudo somado, sairia bem mais barato.
A praia era pouco conhecida, como disse antes, afastada. Havia apenas o mar, o principal atrativo, areia e muito mato por todo lado. Quase sempre deserta, exceto aos fins de semana quando aparecia um gato pingado perdido no areal. Na orla, havia poucas casas, esparsas, com muitos terrenos baldios entre elas.
O único ônibus passava uma vez pela manhã, outra após o almoço e o último à tardinha, apelidado por Beatriz de geleca, talvez por ser verde e escorregadio, se sacudindo todo na estrada até se enjoar. Durante muitos anos, era através do geleca que chegavam na casa de praia, carregados de sacolas e mochilas. O percurso era cheio de baldeação. Pegava-se o ônibus da Tijuca para a estação da Leopoldina e ali se esperava o outro que atravessaria a ponte Rio-Niterói (ou, algumas vezes, até a Praça XV para pegar a barca) e chegando no centro de Niterói corriam para alcançar o geleca no ponto final.
À caminho da praia, o geleca subia por uma estrada estreita com um desfiladeiro à esquerda e, por esta razão, Beatriz, assim que entrava nele procurava se sentar no banco deste lado, o do desfiladeiro, para ficar na janela olhando o cenário.
A curiosidade de uma criança nada tem que não seja inocente, bem distante de qualquer outro motivo. Beatriz, com ar meio hipnotizado, olhava os casebres apinhados uns sobre os outros no desfiladeiro, em meio à mata selvagem. Uma ou outra criança brincava ali por perto, no chão de terra, sozinha, se entretendo com o nada e com ninguém para brincar. Poucas e fracas luzes se viam dentro daqueles casebres deixando uma sensação melancólica à medida que a viagem ia se prolongando pelo fim da tarde e o céu ia mudando do cobalto, ao chumbo até o marinho.
Mesmo indo de primeira, o geleca quase não conseguia ultrapassar os vinte quilômetros por hora naquela subida. Era uma viagem longa, exaustiva para seus pais, não sei para seus irmãos, mas, para Beatriz, a imaginação a mantinha além do tempo e do cansaço. Ela se entorpecia, parecendo estar ali vivendo mais perto do cenário que via do que o ônibus lhe permitia, enquanto imaginava: ” – como seria viver ali….“
Assim, se desenvolveu o gosto de Beatriz por observar pessoas, realidades, gestos, gostos, olhares, mais tarde, perceber suas falas, até arriscar na ‘arte’ de ler pensamentos. Hoje, provavelmente julgaria isto ousado e totalmente inconsequente. É que, por ter se tornado um hábito, uma espécie de cacoete, passou despercebido por seus pais que a deveriam ter melhor orientado à respeito ou, até mesmo, a repreendido em tempo. Fato é que hoje, já adulta, Beatriz pensa que possa ter sido a causa de alguns insucessos em sua vida nas questões de relacionamentos.
Mas o que vem ao caso, aqui, na verdade, é a infante que dá nome ao título. Enquanto as pessoas andarilhavam ao seu redor, lá estava ela observando, certo que, despretensiosamente. É o olhar de uma criança curiosa. Afinal, que mal tem em notar que as mãos em concha durante um abraço são diferentes daquelas estendidas nos ombros denotando, as primeiras, mais sentimento e aconchego? Assim como a expressão distante no rosto enquanto os olhos quase tocavam um sorriso… é que tudo lhe parecia ter um e outro significado.
As fotos também não lhe escapavam. As antigas, por exemplo, do bisavô sentado na cadeira ao centro, tendo a esposa de pé com a mão pousada no ombro do marido, e as crianças ao redor deles quase sempre com as caras fechadas, sisudas, meio tristes. As fotos são mais que retratos de pessoas, são também relatos de uma época. Claro que para Beatriz, ainda tão criança, não tinham peso, apenas conversavam com ela seus sentimentos e ela lhes retribuía com a interpretação.
Beatriz, afinal, é só um exemplo de como pode se iniciar a história de uma menina, que apesar de parecer invulgar, talvez seja apenas mais uma criança entre tantas com o estranho dom de enxergar o que nós, adultos, perdemos a habilidade de ver, por não saber mais como usar.
O dom que nos faz perguntar, sempre que estamos diante de uma pessoa ou cenário, mesmo que distante e diferente:
“- como é viver neste lugar..? .”
Kawer
sempre Gosto de seus textos