A professorinha

“- Todos quietos! vou começar a aula!” – Ninguém ou nada se mexia naquele ambiente pequeno onde alunos, professora, alguns móveis e um quadro negro de cavalete se espremiam entre quatro paredes. “– Agora, vocês vão copiar o que vou escrever no quadro!“.

Beatriz organizava-se. Puxou o elástico para abrir sua pasta amarela de cartão e retirou os papéis já cortados e em branco, os mesmos usados nas últimas aulas que deu, sem hora nem dia marcado. Separou tudo o que tinha lá dentro e que pudesse servir para escrever, desde cotocos de lápis pretos, de côr, lápis de cera e hidrocor e esvaziou por completo o seu conteúdo.

Os alunos aguardavam. A turma era muito diversificada e todos compartilhavam, sem regalias, o pouco espaço no chão entre a cama e Beatriz. Raça, gênero, reino, espécie, tamanho ou formato, do jeito que estivessem, vestidos ou nus, nada disso tinha importância para a recém alfabetizada menina de seis anos, e já mestra.

Os mais velhos tinham, aqui e ali, pequenas faltas de cabelos, frutos dos experimentos da primeiríssima infância, quando ainda não se sabia que estes não podiam crescer. Havia também os de pálpebras descaídas, por vezes só de um lado, o que dava a impressão de estarem piscando, na pior das hipóteses, debochando da professora que, naquela idade, ainda não tinha malícia. Esta ficou-lhe à espreita para nela colar só bem mais tarde.

Havia também os tatuados, riscados à esferográfica, que apesar da aparente rebeldia, eram comportados. Os que realmente davam trabalho eram os maiores já que mantê-los de pé sossegados, ou mesmos sentados, com suas enormes pernas e cabeças era um transtorno para a professora que precisava da cama como apoio. Os de barriga estufada também sentavam com dificuldade, diferente dos de cintura fina, assim sendo, o início das aulas era por vezes exaustivo…

– …fica de pé ‘beicinho’! – achatando-o contra o chão com as mãozinhas – ‘Assim você cai, e se cair, caem os outros também ai, ai, ai’.

Certo que a atividade as vezes lhe estressava de tal forma que ela ia ver televisão, mas quando a coisa dava certo e os via ali sistemados, com os olhos vidrados nela e no pequeno quadro negro, que lhe ficava por trás, era uma baita satisfação.

Descalça, pontas de pés, apertava o giz entre os dedinhos, junto com os olhos, para ajustar a miopia que nem sabia que tinha, e lá ia ela desenhando a letra redonda que aprendera a fazer no livro de caligrafia do pré-primário, letra de professorinha.

Após encher o quadros, virava-se:

“- Podem copiar!!”

Os papeis cortados e os cotocos restavam ali intocados à frente dos alunos. As crianças têm o grau de imaginação fértil à ponto de estarem em larga vantagem em relação ao louco, pois dela extraímos apenas a fantasia lúdica, pelo menos enquanto elas não crescem. E assim, para Beatriz, os papéis estavam escritos, tanto que os pegava de volta e lia, e até os corrigia em pensamento… e o tempo não existia.

Por isso, em alguns instantes que não consigo precisar em que fração de número se dava…

“Acabou a aula, podem ir!” – Enquanto fechava com o elástico a pastinha, já meio mole de tanto transitar naquele ofício que desde cedo se revelava fatigante.

A saída dos alunos era rápida, Beatriz juntava material e alunos e lançava-os para dentro do armário. Tão rápida quanto a brincadeira, era a sua saída do quarto…

para algo que a esperava em outro lugar.

E assim, nasceu a primeira vocação da menina…

…antes disso, se houve alguma outra, mais representativa, uma vocação de nascença, digamos, que a primeira infância, por ser um vácuo, não esclarece, fica difícil decifrar pois essas cenas não têm legendas, sequer nomes na cartilha do be-a-bá, só com auxílio de um analista ou de um familiar…

É o que me lembro de mais marcante nas brincadeiras de infância

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