Reflexão e Terapia

Capítulo 1

“- Isso, para mim, vem lá de trás, de um outro tempo…sim, vem de lá, a origem disso tudo. Por isso é tão difícil ir para frente. Precisamos de sinalizações, bengalas o tempo todo. Talvez, se pudéssemos inverter a lógica desse sistema, teríamos uma explicação mais racional, concreta, científica e conseguiríamos entender o percurso da vida da gente. Sinto que a vida tenta, o tempo todo, nos explicar algo, mas não consegue. Há uma falha qualquer nesse sistema, porque não conseguimos desvendar o que há por trás disso tudo. Há várias teorias religiosas, exotéricas, mas parecem todas muito simplistas, uma delas é de que a vida é uma espécie de escola, que quando não passamos de ano, voltamos, vezes sem fim, reprovados, tendo que recomeçar tudo de novo, desde o bê-á-bá. Se assim for, eu não a chamaria de escola. Como poderia ser? Não há um professor competente, um bom livro didático, com explicações, exercícios…. Como querem que aprendamos algo? Depois, quando voltamos, reprovados, ainda nos apagam a memória! Mais me parece que a vida seja apenas uma prova, muito dura por sinal, porque não nos explicaram nada da matéria e querem que nos saiamos bem. A única vantagem que nos dão é que ela é de múltipla escolha, chamam a isso de livre arbítrio, e o que temos para ganhar é jogarmos apenas com a sorte. E talvez nem prova seja, diria que é mais um teste. Aí sim, talvez aí, podemos arriscar uma lógica. O indivíduo vem com uma combinação genética X e recursos neurológicos, biológicos e psicológicos x+p+t+o, em contato com reagentes químicos de outras combinações, que chamaremos de família e é colocado na experiência energética gama, para depois experimentar passar por outras combinações na energia ômega e terminar com alfa. Aí, vamos ver o que vai dar: …hum, este até que vive relativamente bem nessas condições e clima, esse outro, coitado, já acho que não sobrevive. Um roteiro às cegas. Um injusto teste laboratorial. O próprio tempo que nos dão, não é nada. Passa rápido demais. Quando começamos a pensar que estamos começando a entender alguma coisa, ter alguma expertise em algo estamos à porta da velhice. As chances de acertar algo já estão tão limitadas pelo enfraquecimento de todos nossos órgãos e recursos, que muitas vezes nem sempre poderão corresponder ao que (achamos que) começamos a entender…”

Beatriz sentada na cadeira, em frente à escrivaninha, ia fazendo suas breves reflexões, que propriamente hoje as pegou de mal jeito, pois elas se recusavam a serem otimistas (como costumavam ser na maioria das vezes), mas que nos últimos dias, muito pelo contrário, andavam um tanto perdidas, desprovidas de respostas, muito menos, soluções.

Podia-se entender que, chegando a idade dos sessenta, nada lhe parecia mais possível de prever, planejar ou projetar a médio e longo prazo. Caminhava agora à passos mais curtos, sem planos que iam além dos anuais. Planos esses quadrados, recheados apenas de pequenas e monótonas obrigações.

Naquele quarto, o mesmo de quando era solteira e que morou até os vinte e um anos, idade em que se casou, Beatriz se perguntava o porquê de tantos atropelos, tanta confusão em sua vida. Estava definitivamente num emaranhado de fatos, recordações, fracassos, que ficava difícil até buscar um aconselhamento, alguém para tentar desenrolar aquele novelo. Um terapeuta, pode ser, até procurou uma, era psicóloga, simpatizou com ela, mas se fosse concorrer a quem falava mais, Beatriz perderia com certeza. Estava na quinta consulta e ainda só tinha relatado as coisas daquele dia quando a profissional abriu a boca num largo bocejo.

“ – Está cansada, muito trabalho, né?

“- Não, é que eu capto a energia da pessoa e quando é negativa, eu sempre bocejo… ” – respondeu rápido, não teve talvez tempo para pensar. Beatriz quis ainda acreditar que um diploma, após cinco anos de curso tivesse peso e um deslize não fosse fatal, mas aí veio a facada… “– Por isso estou fazendo constelação familiar, você já fez? ”

“Não, só assisti, mas não curti, achei muito teatral” – disse Beatriz, na lata, antes que ela começasse a falar, pois, como disse antes, ela falava bem mais que Beatriz que já sabia que era divorciada e casou novamente e que a constelação a ajudou a perceber que…

“- ´é muito bom, me fez ver que meu primeiro marido deve ser sempre priorizado na minha vida em relação ao meu atual”.  

“ – Então no meu caso que fui criada desde um ano de idade pelo segundo marido da minha mãe, cujo primeiro marido a abandonou, e que assumiu o papel de pai, para mim e meus irmãos, este não tem prioridade na vida dela? Absolutamente, não concordo”.

Dali, antes de agendar a próxima, Beatriz arrumou um pretexto e caiu fora. Já tinha gasto algum dinheiro do pouco que ganhara aquele mês. Arriscaria de novo?

E seria mesmo essa a situação nua e crua? Energia? Seria ômega? Alfa? Pelo sim, pelo não, Beatriz deu um tempo e resolveu se manter mais algum tempo calada.

Mas continuava sem conseguir entender porque estava ali, presa, sem ter como sair daquelas condições. Precisava entender onde estava a sua falha. Não lhe faltavam tentativas, mas sempre acontecia algo, para que não tivesse condições de sair daquele convívio tóxico com quem ela pouco ou nada se identificava, mas que, no entanto, era a sua família.

Tentou já acreditar na influência dessas coisas de carma, reencarnação, dívidas espirituais, mas isso só a desmotivava ainda mais e a afastava ainda mais da solução. Afinal, para tudo há uma solução, um cálculo exato, uma resposta correta, e se a coisa não está dando certo, não traz felicidade, só pode ter algo errado. “ – Então quer dizer que é assim, ponto e basta, aguenta o sofrimento, quieto, por que é só uma dívida e você não pode escapar…”. Ouvira relatos de pessoas que traziam histórias de gerações passadas como heranças, que tanto podiam ser virtudes e riquezas, como podiam ser enormes dívidas espirituais e materiais que vinham se perpetuando por gerações até que um desfecho libertador as conseguisse resgatar em nome daqueles espíritos antepassados. Ou seja, em uma única e breve vida, a pessoa teria a incumbência de, além de acertar sua prova, resgatar os erros das escolhas erradas dos outros, que se saíram mal na prova, ou teste, seja lá como decifremos a vida? De que vale, então, o meu registro individual, minhas impressões digitais que não tem nas mãos de mais ninguém? Seja lá verdade ou não, isso, para mim, não está certo. Por isso Beatriz deixou de vez de se fixar nessa ideia que, além disso, carecia de lógica, de um argumento que pudesse ser considerado científico, ou até empírico. Se havia, não conseguiríamos enxergar com essa nossa visão tacanha, bidimensional, míope, como, aliás Beatriz era…

Mas, efetivamente, uma verdadeira prova estava por ser desvendada… talvez ali fosse um ponto de partida para que Beatriz aprofundasse a pesquisa acerca do seu roteiro da vida, mas antes, teria que deixar de lado a desconfiança, uma característica que a definiriam pela teoria dos astros (outra versão explicativa que nos agarramos por falta de outras opções). É que tendo a lua em gêmeos, vênus em capricórnio, sol lá em peixe e o ascendente em escorpião era uma conjunção que a forçava a ser assim desse jeito. Talvez, devesse realmente acreditar que o princípio de tudo que viveu, e que ainda vive, estivesse nisso, ali, e seria a resposta de toda essa vida conturbada e confusa de que ela já tentou escapar, ou nessa altura do campeonato, apenas entender.

Mas, apesar de incrédula, havia a informação de um passado descoberto por acaso, sem o buscar. Talvez Beatriz não quisesse acreditar, ou não quisesse assumir, ter vivido uma personagem em meio a seus antepassados como a que lhe revelaram ter vivido. E que, enquanto isso não acontecia, enquanto ela não enfrentava o desafio que a chamava constantemente a abrir o túmulo de seus antepassados, ela não conseguiria ver nada com clareza, para que veio e o que era a sua vida.

Um turbilhão de pensamentos a instigava e, agora, estava disposta a se jogar nisso, tinha pouco tempo para desvendar seu misterioso papel nessa vida em que ela tinha a impressão de não ter vivido como deveria.

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